quarta-feira, 16 de maio de 2012

1963

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Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora. Para que o protejam, para que sintam falta. Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço. Um dia mandará um cartão-postal de algum lugar improvável. Bali, Madagascar, Sumatra. Escreverá: penso em você. Deve ser bonito, mesmo melancólico, alguém que se foi pensar em você num lugar improvável como esse. Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo. Parado atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos começa a passar.

Caio Fernando de Abreu






Nunca antes a vira com os olhos fechados, aqueles grandes olhos castanhos agora fechados. Pois bem, ali estava ela dividindo o espaço de uma caixa de madeira com as flores, e esse cheiro que as flores traziam era o que mais doía, não era o mesmo das flores que eu costumava levar a ela. Quando eu a conheci ela simplesmente me ignorou, e acho que se não tivesse embriagada pelo Whisky daquele bar ao menos teria dito boa noite. Não que eu tivesse me aproveitado da situação, mas tive medo de não haver outra oportunidade, e logo me aproximei da mesa  antiga que escondia suas pernas macias e cobertas pela meia calça preta. Como eu sei? Eu a levei para casa, depois de uma certa insistência admito, mas como poderia deixar aqueles fios negros de sua cabeleira vagarem sozinhos pelas ruas numa noite tão escura ? Eu a levei uma, duas, cinco vezes para ser exato, para então conseguir um desejado beijo, desejado e desajeitado. Passava o dia em meio a turbilhões de pensamentos, e todos incluíam aquele rosto fino e sem muita feição. Daria a vida para saber o que ela pensava quando fechava a porta e me deixava de fora do seu mundo, que não demorou muito a ser apresentado a mim. Não dizia uma palavra sobre seus sentimentos e concordava na maioria das vezes sem ao menos prestar atenção no que eu dizia, sentada com o cigarro sempre entre os dedos. Pensei até em querer ser esse cigarro, aquele que em meio a 19 outros iguais era escolhido, passava toda sua existência em meio aos seus dedos e morria em sua boca, deixando todo o estrago dentro daquele corpo frágil.  Mas não, não conseguia ouvir e nem captar qualquer expressão que fosse de seu rosto, tão frio e perfeito. Era tão imprevisível que quando a pedi em casamento ao invés de responder "sim" ou "não", perguntou-me "quando?" . Naquele fim de ano ela nem se quer viu os fogos, e eu pobre tolo que imaginei uma noite tão romântica para nós fui acudi-la no banheiro aonde colocava todo o vinho daquela noite para fora. Mas nem por isso deixou de ser minha amada, e quando deitados na cama ela decidia por si só dormir, simplesmente puxava o edredom se encaixava perfeitamente na minha frente e de costas para mim adormecia. Eu que nunca me atrevi a ver seu rosto enquanto dormia por medo de acordá-la, a via agora dormindo para sempre, sem uma gota de sangue passando por entre as bochechas sempre tão rosadas, os olhos sem um terço da maquiagem forte que costumava usar. E por minha causa, ciumes tolo que a tirou de mim e do mundo, por achar que aquele maldito porteiro pudesse possuir minha princesa, minha pequena. Ali jazia o corpo a quem eu dedicara a alma, mas em vão. Essas devem ser as últimas palavras ditas, pois logo o ácido que misturei no copo de vodca pura com duas pedras de gelo que havia preparado antes de vir fariam efeito e eu estaria junto a ela, pronto para sofrer qualquer tipo de punição, qualquer uma que ela escolhesse, qualquer uma que não fosse ficar neste mundo sem ela.



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